A Unidos de Bangu levará para a avenida, no carnaval 2018, o enredo “A travessia da Calunga Grande e a nobreza negra no Brasil”, de autoria do carnavalesco Cid Carvalho.
Enredo: A travessia da Calunga Grande e a nobreza negra no Brasil
Esse enredo poderia começar aqui mesmo no Brasil.
Porém, ele vem de longe, e os ventos da história nos levam a voltar no tempo para desvendar os segredos das tribos africanas que foram escravizadas e trazidas para as terras brasileiras.
Porque tudo tem começo, início, gênese. E é o sangue que corre quente dentro de nós, que alimenta o fogo ancestral que faz esse começo. E para isso se faz necessário irmos ao encontro dos fundamentos dos reinos milenares do continente negro, expresso nas coroações dos reis congos e na essência da africanidade da cultura negra do nosso país.
Não somos descendentes de escravos. Somos descendentes de civilizações africanas, de reinados fortes e poderosos. Somos descendentes de reis e rainhas, príncipes e princesas.
Somos herdeiros do Alafin de Oyó. Em nossas veias corre o sangue da rainha Ginga de Matamba.
Somos frutos de um povo que conhece as folhas e que sabe como despertar o poder delas, somos filhos da natureza, somos filhos da água, terra, fogo e ar; nosso povo sabe estar no Aiyê, a terra, sem perder a essência do Orum, o céu.
É que muito, muito antes da chegada do branco escravocrata, nós formávamos um reino mágico e sagrado dividido em clãs que, em sua maioria, recebiam nomes ligados a animais e elementos da natureza: clã do camaleão, clã do leão, clã do crocodilo e até clãs das aves e peixes.
Porque a África sempre foi muitas dentro de uma só, até ser retalhada pela escravidão e misturada de qualquer jeito em continentes distantes, depois das grandes águas, depois da travessia da calunga grande.
Trabalhando principalmente na mineração, nas plantações de café e cana-de- açúcar e nos engenhos, essa mão de obra escrava se espalhou por todos os cantos do Brasil colonial resultando em uma grande presença de homens e mulheres negras em nosso território, semeando as marcas definitivas da cultura africana onde se fixaram. Porém, apesar de terem lhes tirado a liberdade, não tinham lhes tirado tudo; eles tinham suas memórias, sabiam quem eram e de onde vinham. Tinham orgulho de suas origens, muitas vezes nobres, de seus deuses, de seus ancestrais.
Porque a África, fora da África, sempre foi, acima de tudo, uma realidade espiritual e a própria representação de grandes reinos ancestrais e vindouros sob o disfarce da eternidade.
Axé Bahia de todos os santos Yorubás, porta sagrada da entrada dos reis e rainhas negras no Brasil. Bendito seja o ouro de tuas entranhas que fez reluzir a liberdade dos filhos dos açoites que sofriam nas senzalas.
Suor escorrendo pelas cicatrizes, o rico metal escondido nos cabelos e a liberdade comprada.
Eis que a rainha feiticeira, soberana do Querembentã de Zomadônu, se tornou senhora da terra da encantaria.
Salve Vila Rica dos fundamentos e das minas gerais. Louvado seja teu solo onde Galanga Chico rei nunca perdeu a majestade!
Abram-se trilhas mata à dentro ou serra acima. E que essas trilhas se transformem em caminhos de resistência e sobrevivência como os traçados por Zumbi, rei dos Palmares e por Tereza de Benguela, rainha do Quariterê!
E será esse sangue quilombola o eterno elo a nos unir. E através de nossas manifestações culturais, espalhadas pelos cafundós desse país, exaltaremos nossos reis e rainhas negras.
Eis que o manto negro da noite já veio saldar seus filhos pretos, anunciando, sob as bênçãos de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, que é hora do cortejo sagrado do maracatu desfilar para honrar nossos ancestrais.
No altar da igreja o capelão coloca cuidadosamente a coroa dourada na cabeça da negra. É uma senhora idosa, de porte altivo e vestida à moda das grandes damas da corte.
A parte de dentro da igreja está quase vazia. Além dos então coroados rei e rainha e alguns personagens da corte negra, a cerimônia é assistida apenas por poucos negros forros, alguns fiéis e o capataz do senhor daquela escravaria toda.
No lado de fora, porém, a situação é distinta. A massa de negros aguarda ansiosamente a saída de sua rainha. Cantam e dançam no ritmo dos bombos, caixas de guerra, agbês e gonguês. O porta-estandarte segura o símbolo da nação com orgulho e as damas do paço exibem as bonecas sagradas. Baianas vestidas de chitão ou com suntuosos paramentos apresentam-se com seus trajes, acompanhadas de pajens e leques. Daí a alguns instantes, quando os já coroados reis deixarem a igreja sob um pálio ricamente ornado, um enorme e ruidoso cortejo percorrerá as ruas da cidade, iluminadas pelas fracas luzes de suas luminárias.
Dali até o amanhecer os negros irão cantar louvores aos seus reis coroados.
Assim como era na África!
Portanto, que não se calem os tambores e que não nos falte a memória!
Salve a magia da África que vive dentro de cada um de nós!
Salve a nobreza negra no Brasil!